quinta-feira, 27 de junho de 2013

MEU INESQUECÍVEL JAÚ

ESCANINHO DE RECORDAÇÕES

MEU INESQUECÍVEL JAÚ

Existem sonhos que nascem e morrem conosco, outros conseguimos realizar e merecem ser compartilhados.
 
Sempre tive vontade de pescar no Pantanal Mato-Grossense. As dificuldades, o ambiente rude de Selva, a circunspecta, sábia e agradável solidão, a diversidade da fauna e da flora, minha queda pelo ambiente selvático, o tamanho dos "gigantes", me atraiam sobremaneira.

Lia a respeito em várias revistas especializadas. Continuo lendo e colecionando.
Visitei a serviço o Mato Grosso, tanto do Sul como "do Norte". Sempre como disse, à serviço, pela PM. Ora para participar de Seminários de Narcotráfico nas Fronteiras, ora para atuar como Instrutor em Instruções Especializadas ou  Operações Integradas  com outras Forças. Mas nunca pude reservar um mísero torrão de tempo para lançar um pedaço de linha dentro d'água em busca de um Pacu, Pintado, Piranha, Corvina, Dourado ou outro qualquer habitante fluvial local.

A vida continuou e o sonho não se materializava. Ora e muito ora, falta de dinheiro, ora falta de planejamento, ora de tempo, ora de como saber fazer para concretizar a vontade de pescador.
Um belo dia, por razões fortuitas, em comparecimento ao aniversário de meu amigo José Carlos Erthal no Município de Bom Jardim, conheci o  Engenheiro  Afonso Erthal, pescador emérito  e regular das terras pantaneiras. Surgiu o assunto e ele imediatamente me convidou para sua próxima pescaria, claro que imediatamente também aceitei.

Em um dia de Agosto  do ano de 2004, após obter permissão da D. Dalva, embarquei em um ônibus fretado em Nova Friburgo, junto com uma equipe de mais 13 pescadores amadores, os companheiros: Afonso, Augusto, Carlinhos Santos, Carlinhos Ferreira, Mauricio, Wilson, Celio, Jorge Pontes, Emilio, Thiers, Thales, Carlyle e Nelson, os quais em sua maioria já por 10 anos  repetiam o mesmo ritual.

Enfrentamos 30 horas de viagem ( dai a necessidade de 2 motoristas) até  chegarmos em Corumbá, Mato Grosso do Sul. Cada um com seus apetrechos pessoais, equipamentos diversos, varas pesadas, molinetes robustos, carretilhas, demais tralhas, complementos e ansiedades. Lá viemos conhecer as iscas próprias: minhocuçu, tuvira, muçum, peixes pequenos vivos/mortos ( iscas brancas), frutas ribeirinhas( pequenas melancias, maracujás e abobrinhas), sem contar com uma infinidade de iscas artificiais.

Embarcamos em uma Chalana, Barco Hotel, muito confortável, de nome Paola I, com camarotes para 14 passageiros, em duplas, contendo banheiro, cama beliche  e restaurante comum. Amarrados a Chalana lá iam 7 botes de alumínio, com motor de 25 CV, reservados para nossas incursões.

Sobe-se cerca de 300 KM o Rio Paraguai. Paradas são estipuladas pelos organizadores, permitindo que em cada uma se procure um tipo de peixe. Duplas são formadas e com seu Piloteiro partem entre 5 e 6 horas da manhã. Ás vezes fica-se direto até as 18 horas na faina, e às vezes retorna-se para almoçar, mas sempre encerrando a pescaria no final da tarde por medida de segurança (o esturro da onça é perceptível incontáveis vezes, principalmente ao anoitecer). O equipamento é bruto , Molinetes,  Carretilhas, Varas, Linhas, Anzóis e Miudezas que suportem pelo menos Peixes  de 15, 20 Kg ou mais, muito mais. Pelotas de chumbo para JAÚ , a maioria entre 200 e 400 gramas ou mais, completam a tralha.
 

Nossa dupla foi formada  pelo  Dr Afonso, nosso querido GLP ( Grande Líder Pescador ) conhecido como caçador implacável do Tubarão do Rio Paraguai, o JAÚ e por mim, marinheiro de 1ª viagem. O Piloteiro foi o Fernando, conhecedor profundo das manhas dos peixes pantaneiros.

Após toda uma extensa noite de navegação fluvial, com uma radiante manhã batizada por excelente desjejum, finalmente saímos para o primeiro dia de pescaria. O piloteiro Fernando nos reservou uma exploração nos "poções", acidentes geográficos de grandes profundidades e submetidos a inclementes correntezas. Pois é lá o habitat do poderoso JAÚ. Não saia de minha cabeça ter que lançar e puxar no molinete com frequência, chumbadas de 200/400 gramas.  E foi exatamente o que aconteceu. É realmente uma pescaria radical, em tudo e por tudo. Lançar a chumbada na forma tradicional é quase impossível. Usa-se assim o seguinte artifício. O piloteiro nos conduz ao centro do "poção", abre-se a argola de controle, libera-se a super chumbada, e com o barco em alta velocidade em direção a uma das margens do Rio, segura-se o caniço com firmeza e cautela, soltando-se o máximo de linha possível. Ao atingir a margem é só trancar, posicionar-se e esperar.

O JAÚ é um peixe  de couro cientificamente chamado JUNGARO JAHU, que domina os "poções" dos rios, os quais possuem cerca de 20, 30, 50 metros de profundidade ou mais.
É um Bagre gigante que atinge até 2 metros  e 180Kg. Normalmente encontra-se no Pantanal do Sul, com peso até 70, 80kg.
É peixe valente, peso pesado, lutador de MMA, mas nem por isso menos manhoso. Sua grande boca e cabeça enganam o pescador "bola de ferro". O JAÚ não arremete desesperado contra a isca, a exemplo do Dourado. Não abocanha o pequeno cascudo, o chumaço de minhoca, como seria proporcional a sua bocarra, e sai como um busca-pé já ferrado,  fazendo o freio do molinete gritar, conforme eu pensava.

É bicho manhoso, com jeito de "cerca Lourenço". Chupa o minhocuçu, a tuvira, o cascudo, o muçum, o acari, a curimba,  como se fossem iguarias francesas a serem degustadas com solene calma e circunstância, com o cantinho de boca, no caso com o cantinho da bocarra.

Lançamos nossas iscas nos poções e nos preparamos para aguardar longos períodos , ao mesmo tempo que cruzávamos os dedos para que as Piranhas e ou Armaus/Abotoados não encontrassem nossas iscas antes dos procurados JAÚS.

Passado algum tempo, e algumas liberações  olímpicas de chumbadas ( haja braço), foi aí que chegou a minha hora... Com  todo seu aparato bucal, o JAÚ faz apenas uma pequena pressão na isca, cheira, torna a cheirar, passa seus bigodes em volta da isca, envolve-a com sua gosma natural e começa a puxar devagarinho. Aí começam as nervosas  adivinhações,- é um pequeno Mandi, é um filhote de Cachara, é um famigerado Armau/Abotoado, um Palmito saliente !!! A linha   0.70 então se retesa. O silencio é absoluto. A respiração se torna pesada. O Bugio ruge mais forte, as Arâncoras e os Caracarás bradam suas gargalhadas no interior das macegas, como a zombarem da taciturnidade do Tuiuiú mais próximo.




O " bola de ferro" Wilton atento, já então com algum suor, a cobrir-lhe o rosto. A ponta do caniço ( Combate, suporte de 80 Libras) começa a baixar lentamente , o Piloteiro então fala baixinho, atenção, é ele, é o JAÚ, conte até dez e ferre com força. Difícil acreditar. A linha cada vez mais retesada, a ponta do caniço continua a descer. È fibra maciça, começo a contar, 1,2... 5...Afonso então fala pela primeira vez, é ... esse é grande Coronel, cuidado , não deixe a linha nem a vara encostarem na borda do barco. Nesse momento tudo vem a cabeça. O rabo dos olhos faz uma viagem, o Rio Paraguai, o céu, os pássaros na margem, o barulho dos Guaribas urrando próximos, a ponta do caniço, a linha parecendo feita de fio de aço, e aí bate um inicio de desespero. E agora ? O equipamento vai aguentar? Será  que a vara é  mesmo resistente? A linha e os distorcedores, será que  resistirão ao peso do "monstro"? Será que fiz todos os nós de maneira correta? O anzol nº 9 vai abrir ? A técnica da ferrada estará mesmo certa? Ou ficarei com cara de bobo, sujeito a gozações dos companheiros e piloteiros ? Tudo isso em uma fração de segundos.......

Decido. É comigo mesmo , não vou esperar até dez de jeito nenhum, 6,...7 e ,  sinto entre meu cérebro, minhas mãos e braços, a vara, o molinete, a linha retesada, o anzol e a isca, que meu Peixe está ali, que o Peixe da minha vida está ali, a meu alcance, nesse momento me transformo em um pescador semi-experiente. Mais 2 centímetros de baixa de vara dou a primeira fisgada. Todo o conjunto ficou pesado. Escuto um grito do Piloteiro,- confirma Coronel, confirma que ele está pedindo mais....
Dou a segunda fisgada, agora não tenho mais dúvida  que estou com um peixe grande na linha.  Agora sim , agora é que a briga começa. Imediatamente o freio do Molinete Daiwa, Modelo BG 60, dispara em um ruido que poucas pessoas tiveram o prazer de registrar. Ajeito a vara de pesca. Não posso me emocionar nesse momento , tem que ser briga de inteligencia. Se eu puxar ao mesmo tempo do disparo do freio do Molinete a linha não resiste. O que tenho que fazer é sustentar o conjunto, pedir a Iara e Netuno  que o peixe não encontre galhadas e troncos no fundão do Rio para o enrosco fatal, e arrumar o caniço para não tocar no barco, e assim criar um obstáculo que poderá quebra-lo. O peixe pára de repente, começo a recolher linha, sempre cuidando para a mesma e a ponta do caniço permanecerem causando tensão na boca do peixe. É ai que um novo mundo  no esporte da pescaria se abre para mim. O barulho da fricção do molinete, alto, vibrante, em alguns momentos impedindo que se percebesse outros sons da natureza ou dos colegas.   É realmente adrenalina pura. Aí pude sentir que a reação da fricção  do freio do aparelho te atinge pela vibração passada através da vara de pesca, não necessariamente pelo ar, vibrando e impregnando  todo seu corpo. E tome linha, e recolhe linha e tome linha e recolhe linha. O piloteiro experiente, imediatamente havia liberado o bote dos camalotes( gigogas) ribeirinhos e com o motor bem devagar, seguia o peixe, ajudando-me bastante, alertando apenas para que não deixasse ele ir para  fundo do poço (alguns tem mais de 50 metros de profundidade). Mas como? Como evitar ???

Não penso em mais nada, o momento do paralisante receio da vara quebrar, da linha estourar, do anzol abrir, do distorcedor quebrar, do molinete trincar,  já havia sido  superado. O superficial gotejar de suor no rosto, agora era um rio caudaloso a ensopar todo o corpo, os braços doíam, o pescoço parecia suportar pesada cangalha.  E o combate prosseguia. Era o meu peixe.....

Após infindáveis minutos que mais pareceram horas, o bichão parou. Nada quebrou, nada arrebentou a linha permanecia com aquele peso, agora já mais  suportável. Os braços ainda estavam a reclamar, as mãos latejavam.  A rotina até certo tempo saudável, de puxar e monitorar pela fricção desembestada, cessou. O piloteiro falou. Ele cansou Coronel ( Já haviam passado cerca de 30 minutos entre a primeira pressão na linha e aquela parada). Calma, muita calma agora, vou recolhendo linha e deixando ela sempre retesada , vara e linha. Adrenalina saia pelos poros. Roupa  colada no corpo. O calor era forte, muito forte.

De repente as cabeçadas. Teria eu pescado um bezerro insubordinado ???? Cada vez que eu recolhia alguns metros de linha o JAÚ respondia com vigorosas cabeçadas, provocando, agora com menos tempo e intensidade, novos disparos da fricção do molinete. Mais algum tempo de luta e a superfície próxima ao bote se torna revolta, pequenos redemoinhos e grandes borbulhas anunciam que o "monstro" estava chegando a tona . Ato contínuo, uma grande cabeça animal se apresenta fora d'água. Era realmente um grande e belo JAÚ, meu primeiro peixe que poderia chamar  de porte.

Ouviu-se um grito, -não deixe ele encostar no baaaarco-, era o Afonso, velho de guerra. A principio procurei obedecer mesmo sem saber porque. Mas depois intuí, ele era grande e forte, não enorme ( com a continuidade das idas ao Pantanal tive oportunidade de ver peixes muito maiores) , mas  para mim, naquele momento ele era o maior peixe do mundo..., e com certeza usaria a lateral do barco como alavanca para arrebentar todo o material e desaparecer nas profundezas do Rio Paraguai. Como sempre, tinha razão o Dr Afonso.

Me recompus (estava com o corpo todo torto), levei a vara mais a frente de meu corpo, afastando-a o máximo que pude da borda do barco. Naquele momento, meu corpo, a vara, o molinete, a linha, o anzol, e já agora o Peixe, eram novamente uma coisa só. O "Imperador" ( este título foi dado posteriormente ao JAÚ, pelos outros pescadores) não me escaparia ( passavam pela minha cabeça naquele momento pensamentos estapafurdios e irrealizáveis, tipo, se necessário, mergulharia no rio em cima do peixe se eu sentisse que ele estava para escapar).

A partir daí foi relativamente fácil,  consegui, com muita cautela, mantendo  a linha sempre esticada, trazê-lo, cansado, vencido, a beira do barco e o embarcamos sem muito esforço. O peixe tinha 1,27 metros de comprimento e 51,7 KG de peso, apurado já na Chalana. Fora uma luta de cerca de 35 minutos. Eu também estava exausto. Sua enorme cabeça se destacava do resto do corpo, sua cor era diferente dos outros JAÚS que eu havia visto em fotografias, sua pele era enegrecida.  Seus barbilhões( bigodes) possuíam um movimento frenético. Os ferrões e nadadeiras eram enormes, seus pequeninos olhos reviravam-se. Um muco leitoso escorria por todo seu corpo.
Não tive tempo de decidir se o soltaria ou não. Infelizmente a luta pela sobrevivencia havia sido demasiada para aquele belo espécime. Em poucos minutos, emitindo um ronco como se fosse um felino e um bufado como se um equino fosse , o magnífico JAÚ fechou os dois pequenos olhos e parando de se debater aos poucos, ficou imóvel. O Piloteiro assumiu o momento falando, Coronel, Dr Afonso,  isto não é normal, mas eu já vi outros peixes morrerem assim,  e ninguém até hoje por aqui conseguiu saber porque. Vamos embora. Tá na hora do almoço. O barco começou a se mover, Afonso falou, não fique assim Coronel, é da vida. Instintivamente passei a mão por todo corpo do JAÚ e falei entre entristecido, desconfortável e algo comovido, obrigado e desculpe companheiro, não era essa minha intenção, que o Todo Poderoso Senhor dos Rios o leve para o mais piscoso Corixo do Paraíso.

E continuamos a pescaria.

4 comentários:

  1. Pior do que MMA essa briga hein...Final um pouco triste, mas aconteceu...
    (o que mais gostei foi [se necessário mergulhar em cima do peixe no rio...kkkkkk)
    Boa

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  2. Coronel Wilton, tenho uma imensa vontade um dia poder conhecer os recantos deste País Continental! Região Nordeste, Norte e Centro-Oste, e quero exaltar as belezas naturais e poder ter contato com os povos ali estabelecidos. Parabéns pela qualidade dos relatos! Um abraço do companheiro Fábio Simões aqui de Niterói - RJ

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    1. E está esperando o que Companheiro Fabio ? Vale a pena. Nosso Pais é uma dádiva de Deus. Claro que tem que tirar algumas pessoas.....

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